O Erro

Acreditei que os pedaços
Dentro do peito embargados
Serviriam de esmola etérea
Para os amores do porvir

Deixei-me acreditar 

Que os cacos do que fomos
Ainda serviriam
Para provar o que somos
Ao que viesse existir 

Já não há nós
Nem lembranças vivas
Nos ventos mortos
Da memória

Às velas rasgadas do tempo
(Pelos fragmentos finos do erro)
Pouco importa a vontade

Na calmaria latente
Aguardo a balsa atrasada
Com minha passagem já comprada
no guichê da luxúria

 

(12/2016)

Eu sou cão e você

é a raposa

da estória fantástica

agora ficção realizada

 

o cão destinado

a todas as presas

capturar

a raposa destinada

a jamais ser

capturada

 

paradoxalmente petrificados

meus olhos líticos

condenados
à vê-la
à distância das estrelas

nossa proximidade

negada inexoravelmente

pela ordem celeste

e pelas diretrizes lógicas

que defloram

minha existência e a sua

em concreto

(2013)

Suburbia

O som de poucos carros

Rasgando o ar,

Embalado na melodia triste

De um aspirador de pó distante,

Rege a orquestra

De ganidos agudos

Dos cães que esperam

 

Já se vão as primeiras bicicletas

Carregadas de anseios

E receios

Quando não de água

Ou gás

 

Também já passam das seis

E todos são livres

Para buscar os pães

E perseguir a felicidade

Afogados na negação

E conforto do cárcere

 

O elevar de vozes

Dos mínimos seres condôminos

Abafa-se

Em meio à epifania de vida

Do Subúrbio

 

Prova inegável

De que existe vida submersa

 

(2012)

O Campo das Possibilidades

 

Depois de muito o encarar
Decidi-me a atravessar
O morro das lamentações

Passado o penoso exercício de subida,
O sinuoso caminho de descida,
Finalmente respirei os ares
Do fantástico Campo das Possibilidades

 

Lá, vi o brilho apagado
Dos futuros em construção
Que poderiam ter sido
E que não foram

Rápidos, por mim passaram
Vários amores desacreditados
Que muito embora fragilizados
Em tal terra não se vão

Crianças aqui nascidas
Riem-se das flores incontidas
Que no Campo desabrocharam

Tantas e tantas flores

E sob um céu arco-íris
Voam tristes
Erros inconcebidos
Que pelo medo confundidos
Com risco inconsequente

À contragosto

 

Os cabelos encaracolados da almôndega

Empapados num molho de tomate fresco,

Os pedaços de carne

Moída

Espalhados ao longo do meio fio

 

Enquanto a macarronada esfria,

Outro prato

Anônimo

Fora servido aos olhos

Famintos

 

Quem tu viu?

Quem tv?

A desgraça

O pedido compulsório do menu

A história de uma senhora

Uma velha senhora

Contou-me uma história

Das mais fantásticas.

Disse-me ela

Que ainda ontem

Era menina.

Brincava com bonecas,

Cantava cantigas de roda

E cozinhava barro

Com as receitas mais especiais.
Ao meio dia,

Uma paixão pueril

Negou-a as brincadeiras,

A comida,

O sono

E o sossego.
Com o entardecer,

Deixou-a

Uma parte da menina.
Em seu lugar,

Uma mulher

Então notava

Que seus minutos-anos

Esvaiam-se por entre dedos,
Que já não eram melados

De barro e de alegria.

 

Na noite,

A felicidade e lucidez

De suas mãos enrugadas

Tornaram-se lembranças

De horas atrás.
E agora,

Não sei se esse dia de anos

Deu-se por efemeridade da vida

Ou peça da memória.

 

[fontedaimagem]

Nota histriônica

Eu sou o mocinho
De um filme particularmente longo.
Que em momentos aparenta ser uma fina tragédia,

Senão esfacela-se em uma comédia de gosto duvidoso.
Devo ser palhaço de cinema.
Procuro câmeras
E não as vejo.
Às vezes espero que surjam nas esquinas,
E definam a próxima cena,

A próxima piada.

Mas o empenho mediúnico
Em manter o sigilo das filmagens
Supera minhas capacidades de detetive hollywoodiano.
Sigo em minhas trabalhosas trapalhadas.
Chorando de rir,
Rindo de chorar,
Onde alegria e pranto se disfarçam,
Enquanto os créditos não sobem.

Aquilo que dizem dos palhaços:
Os mais engraçados, são também os mais tristes.

(2011)

 

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